Quando falamos sobre a obra "EU", de Augusto dos Anjos, nos deparamos com um conjunto de poemas que desafiam a sensibilidade do leitor, guiando-o por um labirinto de angústia, morte e uma visão cruel da existência humana. Publicado em 1912, o livro, único na produção do poeta, carrega um peso existencial que transcende a própria era literária em que foi escrito. A obra faz parte do Pré-Modernismo, porém seus elementos de natureza mórbida e introspectiva aproximam-na, por vezes, de uma visão literária que é também modernista, principalmente no que se refere à crueza de suas imagens e à tensão de seus versos.
Ao mergulharmos nas páginas de "EU", somos confrontados com um subjetivismo extremo, onde o poeta se coloca, em um ato de autoflagelação poética, como o centro de seu universo, como se fosse a própria representação da dor e da desilusão humanas. O título da obra, "EU", não é casual, mas uma afirmação existencial do poeta que se coloca como sujeito e objeto de suas próprias inquietações. Augusto dos Anjos revela um eu dilacerado e, ao mesmo tempo, autossuficiente em seu sofrimento. Ele se coloca no centro do seu mundo, e, ao mesmo tempo, faz da dor a sua maior companheira. A partir dessa construção, o poeta nos leva a questionar o próprio sentido da vida e a inevitabilidade da morte, temas recorrentes ao longo de sua produção.
A característica que mais salta aos olhos na obra de Augusto dos Anjos é a linguagem, que é, de certa forma, rude, impetuosa e impiedosa. Seu vocabulário, muitas vezes, é descrito como "mórbido" e "vulgar", mas isso não deve ser visto como um defeito. Ao contrário, é essa crueza que dá à sua obra uma força quase visceral, algo que remete à natureza implacável e indiferente da morte, da qual ele não se afasta. Sua poesia é hiperbólica, como se o poeta quisesse tornar cada emoção, cada dor, mais pungente, mais intensa, e assim, imortalizar a tragédia de sua própria alma. Através de imagens como “os vermes da terra” ou “a podridão do corpo”, Augusto dos Anjos antecipa temas que seriam caros ao Modernismo, como a fusão da vida com a morte, a decomposição do ser e a busca por uma verdade crua.
Outro aspecto importante da obra é a influência do cientificismo naturalista, com o qual Augusto dos Anjos se relaciona de forma peculiar. Ele utiliza uma linguagem que remete à ciência, à anatomia e à biologia, não como forma de esclarecimento, mas para ilustrar a fragilidade humana, sua efemeridade. Isso se observa, por exemplo, no poema "Versos Íntimos", onde o poeta se coloca como um ser destinado à morte, à decomposição, e a ideia de que o corpo humano, que um dia foi cheio de vida, é apenas matéria, sujeita à degradação.
Contudo, não podemos reduzir a obra de Augusto dos Anjos a uma mera apologia ao sofrimento. O poeta, em sua melancolia, também busca uma reflexão filosófica sobre a condição humana, desafiando o leitor a olhar para a vida com um olhar mais crítico, mais atento à fragilidade da existência e, ao mesmo tempo, à sua efemeridade. Há em sua obra uma certa ironia diante das grandes questões da vida, como a morte, a religião e a moral, elementos que são tratados sem adornos ou suavizações, mas com uma franqueza quase assustadora.
Em suma, "EU" é uma obra literária que não se acomoda às convenções de sua época. Ela rompe com as formas poéticas tradicionais, com o lirismo das gerações anteriores, e se adentra no terreno da desesperança e da introspecção profunda. Augusto dos Anjos pode ser considerado um dos maiores poetas da literatura brasileira, não só pela originalidade de sua voz, mas pela intensidade de suas ideias e pela forma como soube transformar sua visão de mundo em arte. Seu livro é um mergulho sem piedade na alma humana, um convite a confrontar as verdades incômodas que preferimos ignorar.
Essa obra, tão subestimada na época de sua publicação, é, para nós, um alerta sobre o destino que todos compartilhamos: a decadência, a morte e, por fim, a poesia. E é através da poesia, ainda que crua e impiedosa, que Augusto dos Anjos, com seu "EU", consegue desafiar a efemeridade da vida humana, tornando-se eterno em sua dor e reflexão.