Napoleão Bonaparte: Discurso sobre a felicidade (1791)

por Professor Prezotto

Manuscrito autógrafo conservado na Bibliothèque nationale de France
Edição crítica estabelecida por Jean Tulard (1967)

O manuscrito autógrafo, conservado na BnF, apresenta caligrafia firme, poucas rasuras e uma estrutura de ensaio que revela preocupação com a clareza argumentativa — sinais de uma mente já voltada à ação e ao controle formal.
Em 1791, aos 21 anos, um jovem tenente corso — recém-formado em Brienne e mergulhado no caos da Revolução Francesa — redigiu para um concurso da Academia de Lyon um ensaio filosófico de notável maturidade: o Discours sur le bonheur. Neste texto, Napoleão Bonaparte já demonstrava uma visão desencantada da condição humana que prenunciaria sua futura trajetória.

A VISÃO NAPOLEÔNICA DA FELICIDADE

O manuscrito revela um pensamento já formado sobre a natureza ilusória da felicidade humana. Para o futuro imperador, a vida se apresentava como uma sucessão de combates onde as alegrias são apenas breves intervalos entre sofrimentos. Esta perspectiva, influenciada pelas leituras de Rousseau e pelos ideais estóicos que marcaram sua formação, estabelece as bases de uma filosofia pessoal que o acompanharia até o exílio.
Napoleão desenvolve no texto a ideia de que a verdadeira grandeza reside não na busca da felicidade — que considera quimérica — mas na aceitação do destino e na dedicação a causas superiores ao bem-estar individual. Esta concepção será fundamental para compreender suas escolhas posteriores, da campanha da Itália à decisão de retornar de Elba.

A PROFECIA AUTODESTRUTIVA

Um dos aspectos mais notáveis do ensaio é como antecipa os dilemas que marcarão a vida do autor. O jovem Bonaparte já intuía que homens destinados à ação transformadora pagam um preço pessoal elevado por suas realizações. Esta reflexão ganha particular relevância quando consideramos sua trajetória: da consagração imperial em Notre-Dame de Paris (1804) ao crepúsculo solitário em Santa Helena (1815).
Como observa Jean Tulard na introdução à edição crítica de 1967: "O paradoxo napoleônico reside em ter construído sua glória sobre a própria negação da possibilidade de encontrar satisfação duradoura nela." Esta tensão entre ambição e desencanto percorre toda a obra napoleônica, dos boletins da Grande Armée às reflexões do Memorial de Santa Helena.

DIÁLOGO COM A TRADIÇÃO FILOSÓFICA

O pensamento expresso no Discours sur le bonheur ressoa com tradições filosóficas que vão do estoicismo antigo ao romantismo nascente. Encontram-se ecos de Marco Aurélio na aceitação do destino, de Pascal na análise da condição humana, e antecipações do que seriam temas centrais em Schopenhauer e, mais tarde, no existencialismo francês.
Esta filiação intelectual não é casual: forma-se aqui uma cosmovisão marcada pela renúncia e pelo heroísmo que fará de Napoleão não apenas um conquistador, mas um pensador da ação, capaz de transformar o pessimismo antropológico em energia criadora.

CONTEXTO HISTÓRICO E RECEPÇÃO

O manuscrito foi redigido em um momento crucial da Revolução Francesa, quando as certezas do Antigo Regime ruíam e uma nova ordem se desenhava. O jovem Bonaparte, ainda em busca de sua identidade entre a Córsega natal e a França adotiva, projeta no ensaio suas próprias interrogações sobre o sentido da existência em tempos de transformação radical.
A recepção posterior do texto foi marcada por sua instrumentalização política. Durante as Guerras Napoleônicas, trechos foram utilizados pela propaganda tanto favorável quanto hostil ao Imperador, demonstrando a ambiguidade fundamental de um pensamento que recusava consolações fáceis.

ANÁLISE LITERÁRIA

Do ponto de vista estilístico, o "Discours sur le bonheur" já revela características que marcarão toda a prosa napoleônica: a concisão, a força da imagem, o ritmo cortante das frases. O futuro autor do Código Civil já demonstra sua capacidade de sintetizar ideias complexas em fórmulas memoráveis.
A estrutura argumentativa segue os cânones retóricos clássicos, mas com uma intensidade pessoal que transcende o exercício acadêmico. Percebe-se que o jovem autor não apenas desenvolve um tema filosófico, mas interroga seu próprio destino.

LEGADO E INTERPRETAÇÕES

O "Discours sur le bonheur" permanece como documento fundamental para compreender a formação intelectual de Napoleão. Mais que um exercício de juventude, representa a matriz de uma weltanschauung que explicará tanto as realizações quanto as tragédias do Império.
Estudos recentes, como os de Jacques-Olivier Boudon sobre a campanha do Egito (2018), mostram como os temas desenvolvidos em 1791 ressurgem nas proclamações aos soldados e nas reflexões políticas da maturidade. A continuidade é notável: o mesmo homem que questionava a possibilidade da felicidade individual não hesitará em sacrificar milhões de vidas em nome de uma ideia de grandeza coletiva.

CONCLUSÃO

O "Discours sur le bonheur" revela um Napoleão ainda em formação, mas já portador da visão trágica que o conduziria aos cumes do poder e aos abismos do exílio. Documento de excepcional valor histórico e literário, permanece como testemunho de uma das inteligências mais complexas da modernidade europeia.
Como síntese, pode-se dizer que este ensaio juvenil contém, em germe, toda a grandeza e toda a fatalidade napoleônicas — a intuição precoce de que os homens destinados a transformar o mundo são também aqueles condenados a nunca encontrar nele a paz.

FONTES E REFERÊNCIAS

Fontes Primárias:

BONAPARTE, Napoleão. Discours sur le bonheur (c. 1791). Manuscrito autógrafo, Bibliothèque nationale de France.
Edições Críticas:
TULARD, Jean (ed.). Napoléon Bonaparte. Œuvres littéraires et écrits militaires. 3 vols. Paris: Bibliothèque nationale, 1967-1968.

Bibliografia Secundária:

BOUDON, Jacques-Olivier. La campagne d'Égypte. Paris: Belin, 2018.
BRUGUIÈRE, Michel. "Napoléon écrivain". Journal des savants, n°4, 1969, p. 247-250.
REINHARD, Marcel. "Jean Tulard, Napoléon Bonaparte, œuvres littéraires et écrits militaires". Annales historiques de la Révolution française, n°200, 1970, p. 405-406.

Este estudo baseia-se na edição crítica de Jean Tulard (1967) e nas pesquisas mais recentes sobre a formação intelectual de Napoleão Bonaparte. As citações diretas do manuscrito requerem consulta à edição original para verificação textual completa.
Postagem Anterior Próxima Postagem